Por aqui, nada fácil. A experiência de um ente querido num leito de hospital, é uma situação nova, desconcertante, que tira toda a base do viver, quebra o automatismo, a rotina. Quase todos acabam até perdendo a noção cronológica de tempo. Já o tempo psicológico... Esse, ao contrário, bombardeia a todos. Tenho acompanhado de perto a manifestação do pensamento, com toda sua carga de tempo psicológico judiando a todos os familiares. É inevitável a impotência diante de sua manifestação, conteúdo e carga energética resultante. O pensamento se manifesta, você observa e, sem dar trégua, o mesmo entra pela porta de trás de outra maneira, com nova carga e intensidade. É um movimento cíclico, repetitivo e profundamente desgastante. É uma obsessão: o pensamento, com seu impulso, persistente, recorrente, indesejado, não convidado que surge involuntariamente causa desgaste e aflição. E não adianta tentativas de ignorá-lo ou de suprimi-lo, pois o mesmo surge quando quer, como quer e com a carga e intensidade que assim quiser.
Esse movimento no tempo, essa involuntária e acelerada viagem mental entre passado e futuro, rouba toda manifestação do presente, do agora, do sagrado momento, que acaba sendo emocionalmente contaminado, seja por ondas de excitação psíquica, por profunda ansiedade, inquietude motora e, ao anoitecer, pela insônia. A mente é tomada por idéias fixas doentias, as quais, só de pensar expressá-las, já faz o rosto corar de vergonha. E, quando o pensamento percebe a si mesmo, quando percebe o conteúdo dessas vergonhosas idéias fixas, faz uso do mesmo, numa tentativa de encontrar alimento para a manutenção de seu ciclo compulsivo, através de uma identificação formada num teor de auto-censura: como você pode pensar dessa forma diante de tal situação?... E com isso, novamente dá-se inicio ao involuntário ciclo vicioso do pensamento compulsivo.
Tenho procurado ficar somente na observação, sem fazer uso de qualquer tipo de objeto anestesiante: pessoas, livros, internet, celular, caminhadas, ou seja lá o que for. Mas confesso: não é nada fácil, ao contrário, é profundamente desgastante. Tenho observado a manifestação do pensamento, bem como o meu funcionamento mecânico nas atividades do cotidiano, com a mente sempre viajando nessa ponte passado/futuro. Um bom momento para se perceber isso é durante o banho: o corpo está sob a água que cai do chuveiro, mas a mente não está lá. Está sempre projetando um acelerado filme rico em detalhes, onde invariavelmente, somos o personagem central do filme. É um egocentrismo descomunal; a mente, com sua intrincada rede de pensamento, quer sempre roubar a cena, ter razão, retalhar, discriminar, vingar, entre outras tantas sugestões de ações violentas mais. Literalmente, é um estado de profunda doença mental.
Sei que se eu comentar isso com outras pessoas, logo as mesmas afirmaram que isso é um estado “normal” a qual todos são acometidos. É um verdadeiro estado de debilidade mental, que acaba me deixando por vezes sem o necessário vigor físico diante dos fatos e acontecimentos presentes. Como já conversamos a respeito disso em outras situações, apesar de todo desgaste resultante, posso afirmar que a capacidade de observar os movimentos da mente, sem a antiga reação de me identificar com suas insanas projeções, é um verdadeiro estado de benção. Essa observação, isenta de julgamentos, esse ver apenas por ver, tem me libertado dos antigos conflitos resultantes das reações impulsivas e inconscientes que se abatiam sobre mim e sobre os outros, que, por também não estarem atentos, acabavam vitimados pelas minhas reações impulsivas originadas pela identificação com a rede do pensamento compulsivo involuntário.
Ficar no aqui e agora, ainda é um sonho. Tenho percebido que mesmo em profundo estado de observação, lá no fundo, bem no fundo da mente, há uma espécie de veio por onde jorram as mais variadas formas de pensamento. É como se tivéssemos um fio descascado a roubar energia, causando uma enorme e desnecessária perda de energia. O movimento é tão forte que chega a afetar o físico através de somatizações. A mente passa a criar dores físicas, numa tentativa de que você se identifique com as mesmas, e, dessa forma, amplie ainda mais o ciclo da obsessão mental. E, mesmo estando atento, acaba ocorrendo a manifestação de um quadro de estado físico letárgico. Você percebe isso, a mente, os pensamentos, as projeções, os sintomas emocionais e físicos advindo dos mesmos, a letargia, a ansiedade, vê tudo isso assim como a profunda impotência diante desse insano sistema auto-centrado.
Hoje, posso lhe afirmar que entendo visceralmente aquilo que Krishnamurti quer dizer com observador e a coisa observada. De fato, enquanto existir essa fragmentação de nós mesmos como “aquele que observa” e “aquele que é a coisa observada”, haverá perda de energia e conflito. Muito bem, diante dessa profunda consciência de si mesmo como um ser fragmentado, surge à pergunta: será mesmo possível a manifestação de algo capaz de libertar a mente desse involuntário mecanismo de projeção de imagens nessa ponte passado/futuro? Será possível uma ocorrência que faculte a libertação desse insano e desnecessário movimento da mente, causadora desse profundo desgaste mental, físico e emocional?
Também percebo que essa ocorrêcia não pode ser fruto da vontade, do desejo, que em sua origem, É pensamento. Essa ocorrência, se existir, não pode estar no tempo, nos limites do conhecido. Tem que ser uma ocorrência que supere o conhecido e que possa sobrelevar a nossa condição humana, que agora, se encontra prisioneira dessa enorme rede de pensamento coletivo, manifesta em cada indivíduo. Talvez, a manifestação dessa ocorrência que não é do tempo, que não pode ser traduzida em palavras, seja o que os antigos quiseram representar através da palavra “Deus”.
Até onde cheguei neste processo, posso lhe afirmar que “eu por mim mesmo” sou totalmente impotente perante a involuntária manifestação e fluxo do pensamento. “Eu por mim mesmo”, não tenho como me ver livre desse estado de atenção constante que mesmo sendo menos maléfica que a identificação, também causa desgaste de desnecessária energia. Mais do que nunca, sinto a profunda necessidade de uma manifestação que transpasse a ação daquele que vê por detrás destes olhos que pensam ver. Sem ela, só por agora, não vejo como possamos experienciar na pele “a verdadeira liberdade do espírito humano”, uma liberdade que transpasse as pesadas trancas criadas pela mente condicionada pelo sistema do pensamento coletivo.
Um forte abraço,
Seu amigo e irmão,